- O que você ta lendo?
- Samuel Beckett
- Não conheço...
- É um dramaturgo irlandês, ele não tem cara de crocodilo?
Mostro a foto na capa do livro.
- Na verdade não...
- Tem sim, eu vou te mostrar outra foto.
Vamos até o computador e eu mostro pra ele uma foto em que a expressão carrancuda do autor é completamente crocodilical. Daniel concorda comigo. Deixo o livro, ele sai do quarto. Passo a procurar fotos de autores famosos e pensar como seria a minha foto na orelha de um livro. Não gosto da expressão Cult e nem da cara de deprimido, Beckett tem a seu favor essa cara de mau. Eu gosto especialmente da foto do Camus que tem na orelha de O Estrangeiro. Ele ta muito bonito na foto, em nenhuma outra foto ele é bonito assim. A foto é do Bresson e estou convencida de que ele era apaixonado pelo Camus para poder fotografar ele bonito assim. Mas também isso não é verdade.
Daniel é meu roomate, acho que não existe palavra melhor em português. Não temos muito em comum, ele não gosta muito de sair e ele não gosta do Rio de Janeiro. Acho bom isso da gente não ser parecido, existe a possibilidade de uma melhor convivência sem a necessidade de uma amizade. Temos essa piada pronta de que eu sou uma pessoa muito esquisita. Lendo crocodilos e fazendo comidas pra lá de integrais.
Eu acordo cedo e vou para Ioga três vezes por semana, vou andando pela praia. Ai volto pra casa e escrevo um pouco. Foi o que eu sempre quis dizer que eu faço “volto pra casa e escrevo um pouco”. De tarde tem o curso, tentamos todos ser amigos por lá apesar da competição. Volto pra casa, faz 2 semanas que estou aqui e ainda me perco um pouco. Estou procurando um samba bom para freqüentar em Santa Tereza, vou para lá uma vez por semana e tento ficar sozinha tomando uma cerveja. Mas sempre parece solitário demais. Ou alguém me tira pra dançar e acho constrangedor de mais dizer que sim e constrangedor de mais dizer que não. Tento ver um filme todo dia no cinema ou em casa, um bom filme e depois escrever sobre ele.
Sempre compro mais comida do que preciso ainda não sei organizar isso e sempre acho que vou ser mais saudável do que realmente sou. Uvas, abacaxi, morango, banana, maçã, cebola, cenoura, abobrinha, alface, tomate, pepino e couve-flor.
Desde que surgiu a possibilidade de mudar para o Rio sempre sonho com o dia em que vou chegar para o meu professor de Yoga e dizer “eu queria que você me recomendasse uma boa escola de Yoga no Rio”. Porque eu tenho gostado muito de fazer yoga e não queria perder o gosto com a mudança. E ai veio a idéia de que no Rio eu poderia fazer yoga e andar na praia. E ai onde eu ia morar por lá? Analisei toda região e comecei a pensar com quem e como eu ia morar. É uma sorte que o apartamento de Daniel tenha duas vagas de garagem.
É claro que Daniel não existe e a possibilidade de ir para o rio parece cada vez mais remota. Eu gosto da Yoga porque de repente parece um esporte que tem um cunho espiritual. Na academia você passa uma hora na esteira ouvindo Lady Gaga e parece que sua subjetividade vai embora junto. Eu nem entendo o que a Yoga propõe espiritualmente, qualquer coisa que deve fazer bem, mal não há de ser. Faz falta qualquer espiritualidade nessas horas que a gente quer muito uma coisa que não depende mais da gente. Falta a quem pedir. Tive vontade de ligar para minha avó “reza para eu conseguir a vaga no Rio, vó”. Como se eu precisasse de um representante espiritual, já que eu não tenho muito crédito. Ou ia perguntar para o professor de Yoga “e ai tem alguma divindades dessas que eu possa pedir alguma coisa? Precisa acender um incenso? Tem alguma burocracia?”. Passei a pensar em carma, quando a gente pula toda o tramite da espiritualidade e vai direto para a superstição: o casaco que eu não devolvi e passei a usar, uma figurinha que eu peguei a mais, quando eu fiquei soltando nomes de autores no meu blog como uma entendida qualquer, tudo que eu fiz de errado nessas últimas semanas...
Acho que não existe qualquer forma de dizer, sem ser ridícula, que isso aqui é o mais perto de um pedido ao cosmos que eu posso chegar.