Ela tinha certeza. Se pudesse entrar nos sonhos dele, ele se encantaria por ela também. Não havia nesse plano qualquer margem de erro, e não havia em sua concepção qualquer outra forma de conquistá-lo. Assim também, porque qualquer outra forma de conquistá-lo seria tediosa, tudo que desviasse do absurdo não valeria a pena. Então com alguma tentativa, que não poderia se chamar de muito esforço e nem um estalar de dedos, lá estava ela; no mundo de sonhos dele. Não parou para observar o que lhe cercava, começou sua grande composição no mesmo instante. Uma praia que não acabava nunca. Sentiu a areia em seus pés e sorriu, mas planejara, ele ainda não poderia vê-la assim. Tornou seu cabelo comprido, e criou o vento que soprava em sintonia com seus cachos. Usava um vestido simples branco, que torneava seu corpo, nunca se sentira tão segura de sua forma. Pronto, combinava com a praia de areia clara, mar azul, o céu sem nenhuma nuvem. Faltava ele, posicionou o ali mais longe do mar. Ela caminhou com a água batendo nos pés sem andar na direção dele, mas se aproximando.
Quando ele a avistou, sem se mover, de repente estava na beira do mar ele também. Ela olhou para ele e sabiam imediatamente o que deveriam fazer. Tinham que trocar de roupa para entrar no mar. Não havia o que perder tempo ali pensando no corpo nu um do outro, a missão de entrar no mar parecia urgente. Mas nada deveria ser apressado tudo era feito com calma, como um ritual. Ela vestiu um vestido enorme e roxo. Ele colocou os trajes ali designados a ele. Ambos pularam na água, como se o mar fosse um grande lago que ali mesmo já começava profundo. Ela foi se afastando entrando cada vez mais nas profundezas, a roupa não era um empecilho para nadar, na verdade cada vez mais ela parecia um ser pertencente aquele mundo. Ele não conseguia respirar, então voltou à superfície. A praia havia sumido, só havia mar para todos os lados. Mergulhou novamente, prendeu a respiração e tentou seguir o rastro roxo que ela deixava. O ar acabou, tentou voltar à superfície, mas ela parecia ter sumido também. De repente percebeu que não precisava mais do ar. E foi descendo nadando, com medo, certo de que tudo que ele deixasse pra trás não existiria mais quando ele olhasse de novo. Não a vira entrar, mas o rastro chegava a essa construção semi-esférica instalada no fundo do mar. Parecia uma base de guerra feita há muito tempo, tinha pequenas janelas circulares e paredes completamente enferrujadas. Ele não tentou ver o que se passava por dentro, não teve medo de entrar. Abriu uma porta rapidamente. Sentiu-se desastrado, porque muita água entrou com ele, estava numa pequena ante-sala, cuja porta dava para o salão principal, era possível ver o que acontecia, mas inacreditável. Uma festa. Havia todos os tipos de seres, de todas as cores, todos sabiam muito bem onde estavam. Ele não, por isso não queria entrar. Mas a ante-sala tinha um cheiro horrível, de lodo. Era suja. Ele tinha que entrar ou voltar para o mar, mas sabia que se voltasse nada mais estaria ali. E ela. Onde estava ela? Precisava entrar para encontrá-la. Entrou. Todos dançavam, ele tinha medo de reparar nas coisas, a sua direita havia um polvo gigante cor-de-rosa com pulseiras azuis cintilante. Era um absurdo de muito mau gosto. A sua esquerda um tubarão amarelo, com pele de pelúcia, e olhos perigosos vermelhos. Eram tantos, mas ele não queria perceber ninguém. No centro, lá estava ela, sentada num trono feito por uma concha gigante. Quando olhou para ela, todos pararam, ela não sorriu, nem tinha feito até então. Ele queria sorrir, mas não parecia apropriado. Era algo como um momento solene, ela o tiraria para dançar. Ele se esqueceu que não sabia dançar, e dançavam. Percebeu de repente, que apesar de não haver água ali dentro, era impossível, como embaixo d’água conversar. Isso foi reconfortante, ele não queria querer qualquer explicação. E esqueceu de todos à sua volta. Esqueceu das formas, e das cores, e do mar, e do cheiro de lodo da ante-sala e só existia ela. E ficou feliz.
Ela sabia ali naquele exato momento que seu plano havia dado certo. Sentiu ele encostado em seu peito, naquele instante ela era mais alta do que o normal, e se sentiu satisfeita. E sabia da grosseria dessa satisfação, que era como arrotar um bom prato, que era como riscar algo da sua lista de afazeres, como missão comprida. Sentia um certo prazer em sua grosseria, e curtia esse momento de olhos fechados. Quando abriu os olhos reparou em uma das janelas circulares. Havia um peixe do lado de fora. Um peixe enorme e feio, desses com craca pelo corpo. Um peixe certamente com mau cheiro. Sentiu um medo enorme, sabia que ele não representava qualquer perigo, apesar de grande, quase não se movia. Mas era ainda uma ameaça. Esse peixe não estava em seus planos, mas ela sabia que ele estaria ali, sempre soube, ignorava o pensamento até então. O peixe não tinha como ver o que se passava ali dentro. O peixe nem se interessava. O peixe talvez nem ficaria ofendido em saber que nunca poderia ser convidado para aquela festa. Aquela festa estúpida, com seu vestido estúpido, com seu cabelo estúpido. Olhou-se no espelho, e mesmo indignada ainda estava linda. Ela chorou e ele dançando não percebeu. A festa acabou, ele parecia sentir uma satisfação tão doce. Ele a levou pela mão no caminho de volta, sem pensar no que não existiria mais, porque estava tudo ali. Ela não sentia seu corpo, era levada sem perceber. Não vira o tempo passar presa num transe profundo de tristeza. E de repente estavam os dois secos na praia, sentados numa pedra, vestindo roupas menos fantásticas, mas ainda absurdas. Olhavam o pôr-do-sol, ele estava deslumbrado. Sorriu para ela, e estava completamente ciente de sua tristeza, e sorria porque sabia ter a solução para aquilo. Entregou-lhe o peixe morto. Ele esperava ansiosamente sua reação. Ela o examinou, era de fato o peixe. Ele parecia menor agora, mas fedia de fato. Ela sentiu uma tristeza enorme, pouco se importava com a vida do peixe. A dor era porque ele nunca entenderia nada daquilo. É que o peixe precisava existir. E ela sorriu por que não sabia como desapontá-lo. Ele encontrou, no sorriso dela, seu final feliz. O final que ela havia planejado, nada mais.