domingo, novembro 16, 2008

A margem de erro.

Ela tinha certeza. Se pudesse entrar nos sonhos dele, ele se encantaria por ela também. Não havia nesse plano qualquer margem de erro, e não havia em sua concepção qualquer outra forma de conquistá-lo. Assim também, porque qualquer outra forma de conquistá-lo seria tediosa, tudo que desviasse do absurdo não valeria a pena. Então com alguma tentativa, que não poderia se chamar de muito esforço e nem um estalar de dedos, lá estava ela; no mundo de sonhos dele. Não parou para observar o que lhe cercava, começou sua grande composição no mesmo instante. Uma praia que não acabava nunca. Sentiu a areia em seus pés e sorriu, mas planejara, ele ainda não poderia vê-la assim. Tornou seu cabelo comprido, e criou o vento que soprava em sintonia com seus cachos. Usava um vestido simples branco, que torneava seu corpo, nunca se sentira tão segura de sua forma. Pronto, combinava com a praia de areia clara, mar azul, o céu sem nenhuma nuvem. Faltava ele, posicionou o ali mais longe do mar. Ela caminhou com a água batendo nos pés sem andar na direção dele, mas se aproximando. 
Quando ele a avistou, sem se mover, de repente estava na beira do mar ele também. Ela olhou para ele e sabiam imediatamente o que deveriam fazer. Tinham que trocar de roupa para entrar no mar. Não havia o que perder tempo ali pensando no corpo nu um do outro, a missão de entrar no mar parecia urgente. Mas nada deveria ser apressado tudo era feito com calma, como um ritual. Ela vestiu um vestido enorme e roxo. Ele colocou os trajes ali designados a ele. Ambos pularam na água, como se o mar fosse um grande lago que ali mesmo já começava profundo. Ela foi se afastando entrando cada vez mais nas profundezas, a roupa não era um empecilho para nadar, na verdade cada vez mais ela parecia um ser pertencente aquele mundo. Ele não conseguia respirar, então voltou à superfície. A praia havia sumido, só havia mar para todos os lados. Mergulhou novamente, prendeu a respiração e tentou seguir o rastro roxo que ela deixava. O ar acabou, tentou voltar à superfície, mas ela parecia ter sumido também. De repente percebeu que não precisava mais do ar. E foi descendo nadando, com medo, certo de que tudo que ele deixasse pra trás não existiria mais quando ele olhasse de novo. Não a vira entrar, mas o rastro chegava a essa construção semi-esférica instalada no fundo do mar. Parecia uma base de guerra feita há muito tempo, tinha pequenas janelas circulares e paredes completamente enferrujadas. Ele não tentou ver o que se passava por dentro, não teve medo de entrar. Abriu uma porta rapidamente. Sentiu-se desastrado, porque muita água entrou com ele, estava numa pequena ante-sala, cuja porta dava para o salão principal, era possível ver o que acontecia, mas inacreditável. Uma festa. Havia todos os tipos de seres, de todas as cores, todos sabiam muito bem onde estavam. Ele não, por isso não queria entrar. Mas a ante-sala tinha um cheiro horrível, de lodo. Era suja. Ele tinha que entrar ou voltar para o mar, mas sabia que se voltasse nada mais estaria ali. E ela. Onde estava ela? Precisava entrar para encontrá-la. Entrou. Todos dançavam, ele tinha medo de reparar nas coisas, a sua direita havia um polvo gigante cor-de-rosa com pulseiras azuis cintilante. Era um absurdo de muito mau gosto. A sua esquerda um tubarão amarelo, com pele de pelúcia, e olhos perigosos vermelhos. Eram tantos, mas ele não queria perceber ninguém. No centro, lá estava ela, sentada num trono feito por uma concha gigante. Quando olhou para ela, todos pararam, ela não sorriu, nem tinha feito até então. Ele queria sorrir, mas não parecia apropriado. Era algo como um momento solene, ela o tiraria para dançar. Ele se esqueceu que não sabia dançar, e dançavam. Percebeu de repente, que apesar de não haver água ali dentro, era impossível, como embaixo d’água conversar. Isso foi reconfortante, ele não queria querer qualquer explicação. E esqueceu de todos à sua volta. Esqueceu das formas, e das cores, e do mar, e do cheiro de lodo da ante-sala e só existia ela. E ficou feliz.
Ela sabia ali naquele exato momento que seu plano havia dado certo. Sentiu ele encostado em seu peito, naquele instante ela era mais alta do que o normal, e se sentiu satisfeita. E sabia da grosseria dessa satisfação, que era como arrotar um bom prato, que era como riscar algo da sua lista de afazeres, como missão comprida. Sentia um certo prazer em sua grosseria, e curtia esse momento de olhos fechados. Quando abriu os olhos reparou em uma das janelas circulares. Havia um peixe do lado de fora. Um peixe enorme e feio, desses com craca pelo corpo. Um peixe certamente com mau cheiro. Sentiu um medo enorme, sabia que ele não representava qualquer perigo, apesar de grande, quase não se movia. Mas era ainda uma ameaça. Esse peixe não estava em seus planos, mas ela sabia que ele estaria ali, sempre soube, ignorava o pensamento até então. O peixe não tinha como ver o que se passava ali dentro. O peixe nem se interessava. O peixe talvez nem ficaria ofendido em saber que nunca poderia ser convidado para aquela festa. Aquela festa estúpida, com seu vestido estúpido, com seu cabelo estúpido. Olhou-se no espelho, e mesmo indignada ainda estava linda. Ela chorou e ele dançando não percebeu. A festa acabou, ele parecia sentir uma satisfação tão doce. Ele a levou pela mão no caminho de volta, sem pensar no que não existiria mais, porque estava tudo ali. Ela não sentia seu corpo, era levada sem perceber. Não vira o tempo passar presa num transe profundo de tristeza. E de repente estavam os dois secos na praia, sentados numa pedra, vestindo roupas menos fantásticas, mas ainda absurdas. Olhavam o pôr-do-sol, ele estava deslumbrado. Sorriu para ela, e estava completamente ciente de sua tristeza, e sorria porque sabia ter a solução para aquilo. Entregou-lhe o peixe morto. Ele esperava ansiosamente sua reação. Ela o examinou, era de fato o peixe. Ele parecia menor agora, mas fedia de fato. Ela sentiu uma tristeza enorme, pouco se importava com a vida do peixe. A dor era porque ele nunca entenderia nada daquilo. É que o peixe precisava existir. E ela sorriu por que não sabia como desapontá-lo. Ele encontrou, no sorriso dela, seu final feliz. O final que ela havia planejado, nada mais. 

segunda-feira, outubro 27, 2008



Eu posso não saber muita coisa. Eu não sei arrumar nada, eu tenho sérios problemas em colocar as coisas em ordem. Eu também não sei ensinar nada, por mais que eu saiba fazer, parece que meu jeito de explicar é sempre meio estúpido. Pode-se dizer que eu não sou uma boa pessoa as vezes. Alias tem isso também, na verdade eu acho muito difícil me posicionar, parece que em toda situação os argumentos dos dois lados têm muita validade e é muito difícil me decidir. Mas uma coisa eu sei. Eu sei inventar histórias. Não é mentir, eu nunca soube mentir. E nem contar, contar é muito mais difícil, meu negócio é inventar.
E nesse caso, sendo inventar histórias o único talento que eu realmente reconheço em mim, eu tenho essa fantasia de que quando as pessoas morrem, chega um cara pra você e pede pra você inventar uma história. Não vale contar nada que te aconteceu em vida, nem nada que você já ouviu. Porque esse cara conhece todas essas histórias, ele conhece até as histórias que você inventou e nem nunca contou pra ninguém. A coisa é você inventar uma história ali, na frente dele.
Então eu morri e cheguei nesse lugar, um tipo de caverna e me aparece esse cara, atrás dele há uma porta. Ele pede pra eu inventar uma história, e eu digo “Eu posso não saber muita coisa....” e ai tudo continua até a parte que o cara dos mundos dos mortos pede pra eu inventar uma história. Não é melhor do que as histórias que eu criei em vida mas o cara olha pra mim e diz “ótimo começo, mas como essa história continua?” E eu fico indignada, por que raios minha história não pode parar ali? Um absurdo isso de até depois da morte a gente ter que criar histórias com começo, meio e fim.
Eu também nunca soube criar fantasias direito, porque eu acho que a maioria das pessoas inventam situações que lhe favorecem, e eu sempre me coloco nessas que não se resolvem. Mas eu acho que ele tem razão porque no fundo, eu não sei bem explicar porque, eu entendo que as histórias têm que ter fim e nesse caso eu tenho que continuar.
Mas ao fim da minha história o tal do cara tem que decidir pra onde eu vou, e nesse caso na minha história eu decido pra onde eu vou. E eu não sei pra onde eu posso ir. De qualquer forma, eu não sabia que depois da morte eu ia pra lá então eu vou em frente.
Imagino pra onde eu quero ir. Eu quero ir pra um lugar assim colorido, eu não sei bem o que tem nele mas eu sempre vejo ele assim colorido, e tem um monte de gente que eu gosto, e tem um bando de coisa boa. Eu acho que parece aquela sala da Fantástica fábrica de Chocolate onde tudo é comestível. Mas eu não posso dizer isso. Então eu digo que eu quero ir nadar num líquido gelatinoso vermelho, porque volta e meia eu me pego querendo nadar num líquido gelatinoso vermelho e bem gelado.
O problema é que antes de poder nadar no meu líquido gelatinoso vermelho eu tenho que terminar a minha história, dentro da minha história, para dentro da minha história parar no líquido gelatinoso vermelho.
E se dentro da minha história eu inventasse que quando você morre chega esse cara que te pede pra inventar uma história, e ao final da sua história ele te manda pra algum lugar. E eu poderia ir colocando histórias dentro da minha história e nunca sair de lá, Porque eu to com medo de descobrir pra onde esse cara vai me levar. Ai eu me lembro da Sherazade, e que se eu tivesse morta de verdade eu me arrependeria de nunca ter lido Mil e Uma Noites. Porque se eu tivesse lido Mil e Uma Noites eu poderia dizer se a Sherazade conta histórias toda noite, porque não quer morrer ou se é porque ela ama o sultão, e espera que um dia ele não queira mais matá-la. Porque vai ver no meio das minhas histórias eu começo a amar esse cara. Afinal ele é o único cara ali, e se eu morri agora, acho que eu não amei o suficiente. E como eu não sei se vai ter gente depois que eu terminar minha história, eu preciso amar esse cara. Eu preciso que ele nade comigo no meu líquido vermelho gelatinoso. Mas é mais difícil do que isso, porque eu também não conheço ele, só eu conto histórias pra ele, na verdade, eu nem criei ele direito nessa história, eu só me criei.
E ai eu me pego pensando se é nisso que ele presta atenção na história, o que a gente desenvolve nela, a gente só fala da gente. E eu me pergunto se as outras pessoas que morreram e passaram ali também tiveram que amá-lo e se ele amou alguma delas.
Então na história que eu conto, eu paro de contar a história. E dentro da minha história ele me pergunta o que foi. E eu falo que eu quero que ele fuja comigo para meu líquido vermelho gelatinoso. E ai novamente eu não sei como continuar, porque eu não sei o que ele vai dizer. Mas ele ouvindo essa história diz “Muito bem, é uma ótima história”.
Mas a história não acabou, ele não disse que sim nem que não.
Então ele abre a porta atrás dele, e lá está a sala que eu imaginei, muitas cores, todas as pessoas que eu gosto, quase como na Fantástica Fábrica, talvez melhor. O que é maravilhoso, se não fosse a perspectiva de passar toda a eternidade imaginando como seria nadar no líquido gelatinoso vermelho com ele.

terça-feira, outubro 14, 2008

Não é como se eu me sentisse cheia de alma mesmo...

Esses dias estava eu na frente do prédio principal da faap, quando preciso de uma caneta. A única pessoa por perto era essa mulher meio estranha, fumando sozinha. Peço uma caneta, e ela me puxa da barra da calça, não do bolso, uma caneta de prata com um cordão típico daquelas cortinas antigas. Eu disse "Obrigada" e ela disse "obrigada você".  Nessa hora percebo que não tem nada o que ela deva me agradecer, então talvez se  trate de algo que eu desconheço. Certamente a caneta tem um vudu e ela acaba de roubar minha alma e ainda me agradece por isso. Dez segundos depois de pensar isso, me veio a cabeça que ela trabalha numa loja, e que esta acostumada a dizer "obrigada você" pras pessoas, e ainda mais provável que ela trabalhe na lojinha do museu da faap, tipo de pessoa que teria uma caneta tão estranha. Dito isso, ainda prefiro minha  história do vudu.

segunda-feira, agosto 04, 2008

E eu andava pela casa segurando alfinetes

A gente acordou lado a lado sem saber o que fazer. Como se tivéssemos passado um ano dormindo. Eu fumava seus cigarros deliberadamente. Você dizia gostar dos meus poemas
Nós ficávamos até o fim dos créditos em todo filme. Comentávamos a incompetência desse ou daquele casal. Eu não gostava quando você bebia de mais. Você me censurava quando eu me exibia. Nós detestávamos pessoas desesperadas. Nunca falávamos de nós dois. Eu te intimava pra sair. Você me deixava em casa. Nós nos despedíamos. Você acordou quando eu fiz pouco de você. Eu levantei porque no sonho você me desmereceu. Despertos, envolvidos pela trilha sonora do limpa pára-brisa. Você tremia e eu me perguntava o que a gente tinha feito de errado. Você disse pra eu relaxar. Eu fui embora sem dizer porque. Você devia me odiar. Eu não devia ter contado pra ninguém.
No sonho
Eu andava pela casa segurando alfinetes.



(achei perdido por ai, resolvi postar)