Ela costumava dizer que existiam quatro coisas que você provavelmente nunca fará em vida. mas que talvez fosse importante fazer. Eram elas, em ordem aleatória: Matar uma pessoa, ir à lua, comer carne humana e ir à Antártica.
São experiências muito sérias e que provavelmente mudam completamente algumas perspectivas. acho que não é tão difícil de entender. é só isso, são experiências importantes. e que fazem falta.
ela e o namorado discutiam há algum tempo sobre estupro.
"é que você precisa se proteger mais, o que você faria se acontecesse?"
ele defendia que ela deveria de alguma forma andar armada
"não é um absurdo o que eu to dizendo, se você andasse com uma faca, não seria como uma arma, com a qual você poderia matar alguém. é só algo que esta ali para te ajudar. se acontecer..."
Ela dizia que não aconteceria. e se acontecesse seria uma lástima. mas que ela não gostaria de matar ninguém mesmo assim.
a ele, isso foi como uma ofensa, como ela não mataria seu estuprador? como ela não teria esse espírito de vingança? era quase uma medida preventiva, para que aquilo não acontecesse com outras mulheres. talvez fosse outra experiência importante, ela pensou, mas não quis argumentar nesse sentido.
Ficou até um pouco ofendida, na verdade, essa obrigação repentina de ser uma mulher viril. ela não achava que ele era esse homem viril e nem precisava que ele fosse. apesar de que as vezes seria interessante.
então ela passou a andar com um pequeno canivete no chaveiro, como uma medida de afeto a ele. era um canivete suíço antigo e charmoso. algo que ela se orgulhava de ter. E com o qual passava agora a conviver diariamente.
Assim em qualquer momento de tédio o canivete passou a ser um brinquedo. como usar isso, como puxar aquilo. como ela atacaria um estuprador que entrasse no seu carro.
no momento que ele viesse para cima dela, ela cravaria a faca do canivete nas costas dele.
e ai percebeu, aquela faca precisava ser afiada. lembrou que havia uma pedra de amolar faca na cozinha, custou aprender, cortou o dedo, estragou um pouco a faca. mas por fim tornara sua faca perigosa de fato.
passou a tentar abrir a faca com uma mão só. primeiro com a mão direita, depois com a esquerda. e depois a manejar a faca com segurança, segurar ela com força, mover ela com destreza.
Teve uma noite, em que ela caminhava até o carro, era uma rua deserta. ela segurava suas chaves com força, abriu o canivete e de repente se sentiu segura. ela tinha certeza que nada lhe aconteceria na verdade. mas naquele instante ela deixou de ser vulnerável e tornou-se, de alguma forma, perigosa.
passou a ter uma relação intensa com o canivete. Era um segredo. se sentia segura com ele a vista. tinha vontade de mostrar às pessoas tudo que era capaz de fazer. mas tinha também medo do que pudesse fazer com o chaveiro. E se em uma discussão mais acalorada com um amigo ou com o namorado, aquilo não viesse a tona?
talvez isso fosse um medo masculino, ser capaz a qualquer momento de machucar alguém que se gosta.
as vezes andando sozinha a noite ela sentia até uma pequena vontade de ser atacada. só para ter uma chance real de usar o canivete. mas censurava esses pensamentos. sabia que se isso de fato acontecesse ela provavelmente esqueceria todo seu perigo auto-didata.
Certa madrugada, voltando pra casa, ela parou em um sinal vermelho diante de uma avenida. alguém bateu em sua janela. Tomou um susto. Num reflexo idiota, abriu o vidro. era um homem saindo de um bar.
"vai subir a avenida, menina linda? me deixa no metrô!"
o sinal abriu. ela fechou a janela e arrancou o carro. quase machucou ele. Até machucou um pouco. ele riu sozinho e foi andando em direção ao metrô. Ela olhou pra trás e parou o carro. esperou ele passar por ela novamente e abriu a janela.
"entra ai"
ele entrou no carro e foi falando durante todos os dois minutos que levaram para chegar ao metro. como era difícil morar onde ele morava, nesses dias que choviam tanto. andava chovendo de mais.
ela parou o carro na esquina de baixo do metro. Ele acenou pra ela.
"deus lhe pague, moça"
Ela estava aliviada. Ou levemente decepcionada. Ou completamente decepcionada. Queria viver ali mais um pouco. até demorou um pouco para destravar o carro. destravou e travou novamente. ele olhou pra ela intrigado. ela olhou forte para ele e levantou um pouco a saia. ele se transformou imediatamente. pulou para cima dela, exatamente como ela imaginava. ela puxou com força o canivete, a chave saiu da ignição junto. cravou sem exitar o canivete na nuca do homem.
ela iria à delegacia. alegaria legitima defesa. aquele homem que abordou ela logo antes dela entrar no carro. Ele empurrou ela pra dentrou do carro. Tentou abusar dela. Por sorte ela tinha o canivete em mãos.
depois pensou em quem era ele. em como teria de encarar a familia do homem. em como teria de recontar a mesma mentira tantas vezes.
ela jogou o corpo dele em uma avenida dessas enormes. não havia ninguém andando na rua. e estava muito escuro. ninguém viu nada.
procurou no google em seu celular com internet, como tirar manchas de sangue. ela passou a madrugada inteira limpando sangue do carro, ouvindo beatles.
nenhuma notícia saiu no jornal. ela nunca comentou com ninguém. ela terminou com o namorado porque sentia que era em parte culpado.
ela se prometeu que só contaria essa história quando estivesse muito velha e gagá e pensassem que ela estivesse inventando. as vezes ela perguntava se não era mesmo invenção.
2 comentários:
contar no seu blog como se fosse uma história inventada é um ótimo álibi, ligia. parabéns.
genial!
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